Gata Borralheira

OCUPAÇÃO DESORDENADA

DANIEL LIMA - 16/04/2002

-- Calma, São Bernardo, não é preciso tantas explicações. Compreendo perfeitamente a história e sei o quanto você é importante como agente de vanguarda. Minha pergunta foi a maneira que encontrei para fazer você participar mais dessa conversa toda, porque você parecia deslocado, como se não estivesse nem aí com a Voz do Brasil. Imagine você fora de um debate, você que é o suprassumo do questionamento. Que desconfiança! 

-- Não liga não, São Paulo, não liga não! Eu que tenho uma relação mais próxima com São Bernardo, mesmo sem esquecer nossas velhas rivalidades de batateiros e ceboleiros, sei muito bem que o vizinho não é mesmo flor que se cheire quando se trata de novas propostas. Ele gosta de conhecer os mínimos detalhes. Não tem aquele ditado de que o hábito faz o monge? Só na questão do Fórum Social Pela Paz que não vacilou, porque seria demais, não é verdade São Bernardo?

-- Exatamente. Sou crítico sim. Não tenho a mesma classe média de vocês, mas o operariado que veio para ocupar minhas fábricas e que, com o desenvolvimento econômico, formou uma nova classe social, cristalizada pelo corporativismo sindical, não aceita prato feito nem na hora do almoço. Cada um tempera do jeito que mais lhe agrada. 

-- Está vendo, São Paulo, como tenho razão ao dizer que minha classe média é mais cabeça que a do restante do ABC? Isso é fruto da história, da ocupação demográfica que tive com a Estrada de Ferro no final do século XIX. Vieram para minhas terras imigrantes da Europa que fugiam da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. Armênios, italianos, espanhóis, japoneses, recebi todo esse pessoal de braços abertos. Gente que veio para o Eldorado chamado São Paulo. 

-- Escute aqui, Santo André. Não esqueça de dizer que também estou nessa história. Não deixe escapar a oportunidade de afirmar que São Caetano também foi construído culturalmente por europeus pobres, é verdade, mas gente alfabetizada, de cultura, empreendedores por natureza, com sentimento cooperativo. 

-- Está vendo, São Paulo, como há ciumeira nessa região? Nem acabei de comentar minhas origens sociais e já veio São Caetano para mostrar que não está atrás. E olhe que estava pronto para citar São Caetano também. O problema que São Caetano esquece, São Paulo, é que sou territorialmente mais de 10 vezes maior e que também recebi, principalmente depois de 1950, grandes levas de migrantes brasileiros das regiões Norte, Nordeste, de Minas Gerais e do Paraná, por exemplo. Isso resultou numa sociedade mais diversificada culturalmente do que São Caetano. Vou traduzir da seguinte maneira: não carrego aquele ar colonizador de São Caetano, que deve ser respeitado mas que não passou pela mixagem de fundir europeus e descendentes de europeus com migrantes brasileiros. Essa mistura me deu o que chamo de mais fertilidade social. Podem até achar que perdemos a pureza étnica, que nos abrasileiramos demais, mas me sinto bem assim. 

-- Obrigado pela deixa, Santo André, mas não precisa ofender. É bom que São Paulo saiba que meu tamanho diminuto permitiu que não sofresse tanto os efeitos das migrações em massa que multiplicaram a população do ABC a partir da instalação da indústria automobilística, mas isso não quer dizer que sou menos abrasileirado que você. O que faz a diferença, e que todos vocês, meus irmãos da região, não suportam que eu fale, é que fiquei a salvo dessa correria por terrenos residenciais, comerciais e industriais que marcaram a ocupação demográfica e econômica do Grande ABC. Me safei da barafunda. Está entendendo, São Paulo, por que sou diferente dos meus irmãozinhos? A isso eles atribuem o conceito preconceituoso de bairrismo. A isso chamo de cidadania. 

-- Calma lá, São Caetano. Não é porque você é um território de classe média conservadora que pode pretender dar a idéia de que é culturalmente melhor do que eu. Sou pobre, é verdade, estou no mapa de problemas da Grande São Paulo, sem dúvida, mas quando se fala em Diadema, qualquer pessoa bem informada sabe que sou demais em matéria de participação comunitária. Qualquer um sabe que falou em política, em disputa eleitoral, as coisas fervem em meu território. Isso sim é que é cidadania! Aí em São Caetano, convenhamos, o que temos é apenas um grupo político com a cara social do Município e que comanda a Prefeitura há muitos anos. Se dependesse de São Caetano, a palavra oposição nem constaria do dicionário. Aqui, você sabe, temos muitos adjetivos para oposição. E todos começam e terminam com democracia, mesmo que às custas, eventualmente, de uns arranca-rabos, de uns rabos-de-arraia. 

-- Êpa, êpa, devo admitir que Diadema foi contundente agora hein, São Caetano?

-- Só faltava você, São Paulo, para me tirar do sério. Você não está vendo que isso é provocação! Não notou que oposição só cabe onde tem problemas, onde há pobreza, onde campeia a violência, onde faltam equipamentos públicos para dar conta das demandas sociais? Será que não sacou que oposição tem o mesmo número de letras de problema? Contou? São oito letras. Não percebeu que oposição não é, no nosso caso, assunto para o dicionário, mas para a subjetividade? Para falar a verdade, nem sei o que é oposição. E nem estou preocupado em saber. Quem sabe que se vire.


Leia mais matérias desta seção: Gata Borralheira

Total de 20 matérias | Página 1

16/04/2002 UM QUEBRA-CABEÇAS
16/04/2002 INVASÃO DO COMÉRCIO
16/04/2002 LEMBRANÇAS E ESQUECIMENTOS
16/04/2002 MÍDIA DE MASSA
16/04/2002 MULTIPLICIDADE CULTURAL
16/04/2002 OCUPAÇÃO DESORDENADA
16/04/2002 ESTADO DA GRANDE SÃO PAULO
16/04/2002 DESCENTRALIZAÇÃO
16/04/2002 CRIMINALIDADE DEMAIS
16/04/2002 SENTIMENTO PROVINCIAL
16/04/2002 A TODA PODEROSA
16/04/2002 TÃO PERTO, TÃO LONGE
16/04/2002 QUEM PARTICIPA?
16/04/2002 CONTRA A PAREDE
16/04/2002 EXPULSANDO PROBLEMAS
16/04/2002 COMEÇA A CHORADEIRA
16/04/2002 ENCONTRO NUM HOTEL-FAZENDA
16/04/2002 Prefácios
16/04/2002 Apresentação